Olê mulher rendeira...
O sol da tarde brilha a pico e um ventinho fresco se
intromete pela janela entreaberta da Fortaleza de São
José da Ponta Grossa. É um bálsamo no dia abafado
de dezembro na Praia do Forte, no norte de
Florianópolis. As paredes de pedra erguidas para
proteger a Ilha do Desterro das invasões espanholas
guardam uma figura singular. Acomodada em um
cantinho onde a brisa é quase vento, Neli da Luz não
sente calor, tédio ou cansaço. Apenas tece. Os dedos
nodosos vão pra lá e pra cá, bilros pra todo lado e
pronto. Assim, sem alarde, a rendeira acabou mais
uma pequena obra de arte feita de fios presos a
pedaços de madeira.
Desde que o antigo forte português foi restaurado
pela Universidade Federal de Santa Catarina, há 18
anos, Neli senta ao lado da mesma janela,
emaranhando fios e fazendo renda. Sobre a almofada,
a rendeira de 56 anos tece toalhas, colchas, cobertas
de mesa. Tece a trama da sua vida em forma de
flores, folhas, pétalas, lágrimas. E com seu sotaque de
manezinha, descreve o orgulho de ser o que é. "Sou
rendeira desde os sete anos, nunca tive outra
profissão".
Moradora da praia de Canasvieiras, Neli passa mais de
uma hora por dia dentro dos ônibus que a levam para
a Fortaleza, onde produz e expõe seu trabalho. Não
tem vínculo empregatício com ninguém, não recebe
salário, não tem carteira assinada. Mas agradece a
oportunidade de estar ali, no patrimônio histórico
visitado por tanta gente. "Ah, minha filha, quando é
verão isso aqui enche de gente na minha volta. Ficam
todos loucos pra saber como eu faço a renda. Daí eu
explico como se faz, mostro as peças prontas. De vez
em quando vendo alguma coisa também. Até canto a
música das rendeiras, conhece?
Olê mulher rendeira, olê mulher rendá
Eu te ensino a fazer renda, tu me ensina a namorá"
A pele clarinha e os olhos muito azuis revelam a
origem de Neli e sua renda. Nascida e criada na Praia
do Forte, ela descende dos açorianos que trouxeram
para o Litoral Catarinense a arte que hoje executa com
maestria. Em janeiro de 1748 desembarcaram 473
pessoas na localidade do Ribeirão da Ilha. Em pouco
tempo, espalharam-se pela costa de águas cristalinas
e pesca farta. Além de cuidar dos filhos, da pequena
roça de subsistência e da casa, as mulheres ainda
ajudavam os maridos na pesca. Quando não iam elas
próprias para o mar, auxiliavam no conserto e
fabricação de redes. No tempo livre que sobrava _ se
é que é possível imaginar algum tempo livre depois de
tudo isso _ elas exercitavam a arte usada no país de
seus antepassados para enfeitar as roupas e mesas da
nobreza e do clero.
Embuída de uma inexplicável energia, ela cumpre a
mesma rotina de suas tataravós _ com exceção da
roça. O marido, Celso, é pescador e servente de
pedreiro. Foi ajudando o companheiro a pescar e a
virar massa e fazendo renda no tempo que sobrava
que ela trouxe ao mundo sete filhos. A herança
tramada na renda, no entanto, vai morrer com Neli.
"As duas filhas menores não quiseram aprender. A
mais velha é habilidosa, mas preferiu descascar ostra.
Dá mais dinheiro", lamenta.
Neli acredita que a facilidade de encontrar emprego
remunerado está fazendo a nova geração perder o
interesse pela habilidade de suas mães e avós. "As
rendeiras estão ficando velhas e doentes. Quando não
é a coluna a incomodar, é a vista que não funciona
direito. Eu vou fazer renda enquanto enxergar. Mas só
enquanto enxergar", diz Neli.
Quando mais uma velha rendeira para, uma filha,
neta, sobrinha, vizinha ou amiga precisa tomar o seu
lugar. No entanto, a arte dos bilros é aprendida aos
poucos, no curso de uma convivência longeva. E o
tempo e o interesse das jovens já não é mais o
mesmo que Neli tinha quando observava sua mãe
sentada à almofada, rendando.
Turistas acostumados a passear pela Avenida das
Rendeiras, em Floripa, veem as pequenas casinhas
com portas estreitas, de cujos marcos pendem
toalhas e colchas, e imaginam que o costume está
seguro entre as mulheres da Lagoa da Conceição.
Neli, no entanto, alerta que aquilo é só aparência.
Sem jovens rendeiras, a tradição está condenada.
A prefeitura de Florianópolis assinou, recentemente,
um termo de cooperação com o Ministério da Cultura
para transformar o Casarão da Lagoa no Centro de
Referência da Mulher Rendeira. Depois de reformado,
o prédio abrigará exposições, loja, biblioteca, centro
museográfico e oficinas, para garantir o repasse desse
costume.
Enquanto a capital catarinense não colhe os frutos de
seu empreendimento em favor da tradição rendeira,
Neli e suas pares fazem o que lhes cabe na
manutenção desse legado: rendam. Nos meses de
inverno, quando os turistas rareiam, Neli permanece
ali, sentada na janela da Fortaleza, tecendo o estoque
do próximo verão. Quando precisa ajudar o marido,
bate seus bilros à noite, enquanto todos dormem.
Quando a maré lhe traz amarguras, como a morte de
dois filhos, lágrimas de linha fina ornam mais uma
toalha. Os momentos de felicidade, como o
nascimento dos seis netos, vêm bordados com flores
nas roupas de bebê.
Neli da Luz é rendeira, é mãe, é mulher, é feliz. Sorri
fácil e solta o verbo sem desgrudar um minuto dos
bilros. Estar ali, "naquele lugar histórico e lindo", ser
paparicada por visitantes, vender seu trabalho,
conversar com as companheiras de ônibus, ajudar os
filhos, preparar aquela estopa de peixe com o tempero
que o marido adora. É essa a vida que Neli da Luz
trama na simplicidade de seus fios, na delicadeza de
seus guardanapos e de seu cotidiano.
Artigo de Revista Donna, do Jornal Zero Hora
Fotos de Patrick Rodrigues
Fotos de Patrick Rodrigues
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